
Miguel Melo: O jesuíta que estudou no INA e foi evangelizar... a China
Miguel Melo é filho de pai branco e mãe africana. Oriundo de uma das mais abastadas famílias do Norte, o inesquecível jovem carismático que frequentou o Instituto Nun' Alvres, podia ter escolhido qualquer caminho na vida, mas optou por fazer um voto de pobreza e dedicar-se ao mundo espiritual.
Um mundo onde fez muitas escalas por onde sempre quis aventurar-se, qualquer que fosse o canto do globo, não fosse ele tão sociável e sedento de experiências... aquelas que considera serem realmente enriquecedoras.
O potencial já lá estava quando era ainda um garoto, diz quem o conhece na escola. "Era um rapaz fora do normal. Não era como os outros. A paz de espírito e o brilho nos seus olhos, a maneira divertida com que presenteava os outros, não eram coisas com as quais a maior parte de nós estava habituado", diz um antigo colega seu de escola.
“Estava sempre de guitarra na mão, a contar piadas e a tentar animar as pessoas. Era um verdadeiro poço de energia”. E é talvez na procura da harmonização, da felicidade e da compreensão mútua, que residiu o segredo para aqueles que viriam ser os anos posteriores após frequentar o Instituto Nun ' Alvres.
O jovem estudante que residiu a maior parte da vida a paredes meias com Santo Tirso, (“Acho mesmo que uma parte do terreno da casa dos meus pais é em Sequeirô”), está agora Braga, mas a sua aventura teve contornos mais interessantes do que muitos dos mais incríveis filmes.
Miguel aventurou-se pela China, quando este país era ainda mais insondável e misterioso. Esteve na parte rural da agora potência asiática e lá apregoou o Cristianismo. Poderia parecer um projeto algo utópico se considerarmos que a China é predominantemente ateísta (52,2%) e as religiões com mais fiéis são a Shenista, ou Budista, mas a religião, mais do que um credo é um legado universal de valores ,e isso fica para sempre.
Da viagem conta histórias engraçadas, como ver crianças genuinamente fascinadas com o seu tom de pele. “Nunca tinham visto uma pessoa de cor e ficavam admiradas”. Brincavam com a situação, mas sem malícia. Isso do racismo definitivamente não é coisa de garotos. É algo que a sociedade por “via do medo” incute nas pessoas.
DOIS PÓLOS
Mais tarde Miguel seguiu para Boston, a capital e cidade mais populosa do estado norte-americano de Massachusetts
Boston e a China rural são dois pontos diametralmente opostos em todos os sentidos, e embora tenha tido genericamente boas experiências, o aventureiro "jesuíta" confessa ter notado uma coisa: há nas zonas com menos assimilação cultural maior dificuldade em tolerar diferentes etnias.
O MALDITO RACISMO
Nesta altura em que temas como a discriminação estão na ordem do dia, este homem ligado ao mundo da espiritualidade e com uma vasta mundividência é talvez das melhores pessoas com quem a Santo Tirso TV poderia falar. Principalmente se atendermos aos eventos recentes da profanação da estátua do Padre António Vieira.
Tanto nos Estados Unidos como um pouco por toda a Europa estão a derrubar-se monumentos alusivos a atos que possam ser considerados de dominadores. Como deveremos olhar para este fenómeno? Devemos revisitar o passado? Pedir desculpa? Ou o passado é História e esta deve ser preservada?
As perguntas não têm resposta definitiva do estilo “preto ou branco”. Nada é apenas "preto ou branco". Para Miguel Melo, o segredo da tão almejada união entre todos passa pela compreensão e assimilação entre cidadãos de diferentes etnias, religiões e outras coisas que nos tornam únicos, mas nunca intrinsecamente diferentes.
“Até ao ano passado estive a viver nos EUA e uma das coisas percebi lá é que uma pessoa fica com consciência de que as histórias do passado têm um poder deformativo sobre a sociedade atual. Ou seja, parece que as histórias do passado não são apenas coisas que ficaram lá atrás... fechadas. Ainda há muito ressentimento. Mas acho que há um bocado um exagero”, afirma.
“Acho que é uma antropologia muito naive". A forma como se olhou para o colonialismo também está errada", acredita. "Eiminam-se coisas que remetam para isso, como se tem registado atualmente. Eu acho que isto representa um lado de simpatia para com as vítimas da História, mas por outro lado, penso que este tipo de pensamento traz uma coisa nova que é olhar para essas raízes do colonialismo como uma coisa que ainda hoje continua a ter ação no presente. É uma forma muito naive de tratar a História”, reitera.
Para Miguel Melo não se deve olhar nunca para a História sem ter em conta todos os lados dos conflitos. Em todos os momentos maus da História, houve sempre várias pequenas histórias de altruísmo. Trata-se de uma questão narrativa e didáctica, no seu entender. Saber separar o passado do presente, embora entendendo a sua correlação é muito importante, principalmente em alturas de maior ansiedade
COVID E RACISMO
“Também junto aqui o factor Covid. Eu acho que as pessoas estavam há muito tempo em casa e tinham vontade de fazer alguma coisa. Penso que não podemos levar totalmente a sério aquilo que está a acontecer, porque há uma tendência para o exagero que não tem necessariamente a ver com o racismo e acho que isso se pode ver em todos os lados", diz.
"Tenho amigos a viver em Boston, e eles próprios são americanos, contra o racismo e acham ridícula a ação do Trump, mas isso não pode servir de arma de arremesso para acentuar divisões entre as pessoas".
“O Governo americano parece que dá legitimidade [ao racismo]. A questão é por quanto tempo isto se consegue aguentar. Por quanto tempo esta legitimidade se consegue preservar como uma via de construção social", diz. "Ambos os lados estão a comportar-se de forma errática. Os manifestantes acabam por errar também. Em tempos de crise o primeiro mecanismo natural é procurar quem é o responsável pela situação, mais do que procurar melhores lógicas de convivência e funcionamento da sociedade. Acho que nesse sentido há muito por onde crescer”.
"Há que questionar até que ponto fizemos da democracia uma forma de humanismo e não simplesmente uma lógica de supermercado. A visão do pós-colonialismo tem uma visão que promove um pouco a não-convivência. As pessoas estão todas no seu canto e isso dinamiza um pouco a ideia de que é necessário existir um inimigo, criando um pensamento muito conflitivo. Vive-se muito da oposição, e se não se encontra um inimigo parece que se tem uma crise existencial”, prossegue.
Atribuir culpas a um grupo por causa de ações de indivíduos separados também é uma ação equivocada… de qualquer que seja o lado. "Eu acho que o único corpo na sociedade civil que deve pedir perdão pelo passado é a religião, porque é o único que se identifica como unido ao longo da História".
VANDALIZAÇÃO DA ESTÁTUA DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA
Em relação à estátua do Padre António Vieira, "este episódio apenas demonstra que a História é um bocado desprezada. O Padre António Vieira além de ter sido solidário para com os indígenas nos seus direitos, a verdade é que ele era mestiço”, lembra.
“Temos que ter outra sabedoria na luta pelo reconhecimento e na luta pela igualdade que passa por olhar para o caminho lento da História. É necessário sermos capazes de ver como a História vai crescendo e sermos capazes de não ficarmos obcecados com uma ou outra luta em particular. Não devemos de forma alguma centralizar tudo num combate, como se agora todas as coisas no mundo fossem racistas... Temos que promover a paz através da estimulação de relações próximas".
"Obviamente que a aprendizagem parte também de saber pedir perdão, mas acima de tudo eu acho que a mudança fundamental passa necessariamente pela reconstrução dos manuais escolares de História de forma a consciencializar sem infantilizar e passar uma visão mais plural da História. Temos que ser muito responsáveis ao ensinar História, porque é muito fácil pensar que todos os nazis eram maus... mas temos que perceber a História naquilo que ela tem de confuso, porque isso também nos prepara para a vida. Esse lado pedagogo da vida também é muito importante aprendermos".
UMA HISTÓRIA, VÁRIOS PONTOS DE VISTA
A "humanidade é muito plural e se a maneira de narrar a História não for plural parece que deixa de se tornar humana. Eu acho que isso é o grande desafio da pedagogia no futuro. Não devemos impor uma visão única da História. Devemos usar os meios construtivos... de respeito mútuo e do diálogo intersocial. Devemos dialogar a nossa visão e não impor a nossa visão. Não podemos combater o autoritarismo com autoritarismo.
As pessoas devem manifestar-se de forma pacífica e mais inteligente. No caso do George Floyd, a partir de um determinado momento a família dele passou logo para segundo plano", afirma Miguel Melo.
"Há ali uma certa falta de inteligência emocional. Agora, nesta altura, já não estamos a falar do George Floyd. Ele tornou-se numa espécie de trampolim. Numa determinada altura o irmão do George Floyd estava a dizer: “por favor não façam isto!! Ele não queria que se fizessem estas manifestações com violência". Deu entrevistas a dizer isso... e parece que ninguém deu muita importância".
As raças devem conviver umas com as outras. Os brancos têm que falar com pretos e os pretos devem falar com brancos. Falta proximidade! Há muita gente que se considera eticamente perfeita, mas sem contacto com outras pessoas que sejam realmente diferentes é o amor pelo outro "teórico". Isso não serve! E estes atos de vandalismo recentes são contraproducentes na luta contra o racismo. A luta contra o racismo e todas as coisas más que temos que mudar, temos que as abordar com atitudes pacifistas. É a única forma inteligente de chamar a atenção para problemáticas, sem acabar por perder a razão no processo", conclui.
Miguel Melo, depois da passagem pela China, esteve em Madrid, Boston e está agora em Braga. É padre há sensivelmente dois anos.